sábado, 4 de junho de 2011

A Garrafa de Lágrimas

O texto abaixo é extenso, foi extraído de um livro antigo, desconheço o autor, acho maravilhoso, embora triste.
Por uma noite de luar, em outubro, uma delicada donzela achava–se ao pé da fonte batismal, e respondia às perguntas que afirmavam sua fidelidade à igreja e ao Senhor para sempre.
Apenas dois anos mais tarde, encantadoramente ataviada de flores de laranjeira, ei-la que chega ao pé do mesmo altar, tendo uma poética atitude de confiança, a mão apoiada ao braço de um robusto e nobre mancebo enquanto ela, com feminil recato, responde às perguntas que afirmavam sua lealdade a ele. Em breve despedem-se e ei-los voando através de novos cenários, em busca da propriedade da família do noivo, da qual ele ficara herdeiro.
Duas manhãs depois, ao saltarem o portão, a uns três quilômetros da estação da estrada de ferro, ela dizia: “De certo não falta senão a certeza da imortalidade para tornar este lugar perfeito. Haverá, além do Céu, um lugar mais cheio de bênçãos? Poderia penetrar nesse ambiente angélico alguma coisa que lhe envenenasse o ar?” Pobre moça! Veremos.
Entre este belo palacete e a grande fazenda, bem tratada a uns quatro quilômetros de distância, havia um botequim ordinário, ponto de reunião dos viciados da região. O nobre proprietário da fazenda nunca transpusera seu traiçoeiro limiar. Uma tarde, porém, ele cruzou-o, em companhia de um “amigo”. Mais tarde visitou sozinho o perigoso antro. Ali bebericou, cavaqueou, bebeu, embriagou-se, jogou, foi assassinado, conduzido para casa, e sepultado no jardim da família. Essa breve narração encerra uma imensa transformação naquela aprazível morada, e abrange um período de dez a doze anos.
Na manhã seguinte àquela em que a desolada mulher acompanhara seu esposo à última morada, ela e as duas meninas mais velhas haviam feito um parco almoço; a mais novinha, de dois anos apenas; saíra do leito, e viera para o pé da mamãe, tomando um pequeninho almoço contido num pires. Ela acabava de devorar o conteúdo do dito pires, quando foi entregue à transtornada mulher, que não dormira em toda noite, um bilhete do taverneiro. Dizia mais ou menos:
Cara senhora (cara!):
“Esta tem por fim informá-la de que tenho em meu poder uma hipoteca sobre os bens do seu marido, isto é, a casa e fazenda, utensílios agrícolas, a mobília da casa, e os utensílios da cozinha, bem como malas e guarda-roupas, e as roupas de uso. Como desejo entrar em posse disso, há de fazer o obséquio de desocupar a casa imediatamente. Envio um homem para tomar posse da mesma e das chaves, etc., e representar-me em tudo.”
Isso era de todo inesperado para a pobre senhora. Se bem que os cavalos da fazenda houvessem gradualmente diminuído de vinte e seis a um, e tudo o mais desaparecido de igual modo, supusera que as poucas eiras de terra, a casa e a mobília lhe pertencessem ainda. Chorara tanto durante os últimos anos, que acreditara não possuir mais uma lágrima a verter, a não ser aquelas lágrimas enxutas, ardentes, que cegam e são as únicas que restam a tantas almas angustiadas de mulher. Nisto, porém, estava ela enganada, pois o conteúdo do bilhete desatou uma nova fonte, que gotejou no pires, enquanto ela, inclinada a cabeça, repousava a fronte abatida nas mãos. Não falava- chorava apenas; não pensava- chorava só; não se ressentia com o conteúdo do bilhete, pleno de infernal avareza- chorava unicamente.
A razão volveu a falar; despertou para a consciência da triste realidade. Viu que as lágrimas lhe haviam caído no pires; e com uma intuição feminina, ela vasou com uma colher numa garrafinha. E colocou-a depois nas dobras do seu vestido de casamento. Escreveu então a seguinte carta ao homem que vendera a seu marido a bebida que o arruinara a ele, a ela e a seus filhinhos:
“Senhor:
“Pedis as chaves. Aqui as envio. Essa que tem um fio vermelho “e a do meu guarda-vestidos. Encontrareis ao lado direito do mesmo o meu vestido de noiva. Usei-o uma única vez. Agora vos pertence, pela demanda de meu marido a quem nunca desobedeci. Nas dobras desse vestido encontrareis uma garrafinha, contendo lágrimas- as últimas que me restaram a verter – e as quais têm uma história. Elas falam do nascimento de uma meninazinha que viu a luz sob um teto feliz; de quinze anos de ditosa infância, de descuidosa vida colegial; de um breve noivado cheio de encantos e do casamento com um homem que era o mais corajoso e melhor que conheci na Terra, não fora a bebida; falam do dia em que nos mudamos para esta habitação, tão bem posta então qual um palácio; da lua de mel- ai de mim! tão breve – que aqui passamos. Haveis de encontrar a história de todos esses doces e sagrados prazeres nessa garrafinha de lágrimas!
“Mas eis que sobreveio, aguda e repentina, uma transformação. Podereis lê-la, senhor, nas lágrimas que vos lego.Elas vos contarão a primeira vez que meu marido transpôs o limiar de vosso vil estabelecimento; a primeira vez que lhe senti o hálito de álcool, e como ele me afastou brandamente para o lado com uma profusão de beijos, dizendo que por amor de mim nunca mais havia de ficar sob os efeitos da bebida forte; como se tornou bebedor habitual; a primeira vez que andou cambaleando; seu rápido declínio como chefe de família quanto a administração e quanto ao amor; a facilidade com que me compreendia mal; seu primeiro praguejar em minha presença. Tudo isso, senhor, haveis de encontrar nessa garrafinha de lágrimas!
“Também aí encontrareis a história de uma tempestuosa noite, em que o vento ululava, e a chuva fustigava as vidraças, e o trovão ribombava, e os relâmpagos recortavam o céu de ziguezague de fogo– noite em que dir-se-ia ir por terra, desmoronando o edifício. Foi naquela noite tempestuosa que nossa primogênita, a pequenita Maria, veio a este velho mundo impregnada de álcool. Haveis de achar também, na garrafinha de lágrimas, a parte que desempenhaste em minha casa naquela noite; pois enquanto um médico me assistia, outro no aposento ao lado, cuidava do meu pobre marido embriagado, vítima de imaginárias serpentes, macacos e diabos. Mas ele, na realidade era senão vítima vossa.
Mas isso encontrareis, senhor, na garrafinha de lágrimas.
“Via, à luz dos relâmpagos, como a tempestade fazia joguete das frondosas árvores. Ouvia a chuva a fustigar furiosamente as janelas. Meu quarto era sacudido pelos irados trovões. Mais alto, porém, do que os rugidos da tempestade, soavam-me ao ouvido os grunhidos e gritos, e imprecações de meu marido, outrara nobre e varonil, mas agora decaído e acovardado.
“Encontrareis tudo isso, senhor, na garrafinha de lágrimas. Ouvi o surdo e estranho vagido ­– o vagido primeiro, que anunciava a chegada do meu primeiro filho – choro que de ordinário ­enche de júbilo o coração materno, mas que a mim me encheu de uma nova angústia, lembrando-me de quão apropriado era aquele começo, a uma vida que se destinava a uma pungente vergonha. Primeiramente orei para que perecêssemos os três na tempestade, que parecia agora incitada por todas as fúrias do inferno. Depois, pedi que o pequenino ser vivesse e pudesse atrair o papai às veredas da sobriedade da qual vós, por amor do lucro, o haveis desviado.
“Na manhã seguinte ele veio e, com dificuldade ficou de pé, olhou para nós com os olhos avermelhados, inclinou-se e beijou-me a mim, e à pequenita, e jurou que nunca mais haveria de beber. Acreditei. As cores volveram-me às faces; um brilho juvenil iluminou-me os olhos; e com certo orgulho de esposa e mãe pus-me a fazer planos para a vida e o lar. Em breve, porém, foram eles despedaçados, pois ainda antes de erguer-me do leito, vi-o volver à casa novamente ébrio. O sol que por instantes me iluminara e aquecera a alma, tombou repentinamente, na irremissível treva de uma negra noite; meu céu, se assim o posso chamar, despovoou-se de estrelas. Envelheci. Petrificou-se o coração.
“ Escusado é falar-vos dos poucos anos que se seguiram, pejados de amarguras, e da chegada da minha segunda filhinha; do desaparecimento do luxo, da deserção dos amigos, da ausência de visitas, dos cortes nas despesas e da economia forçada, a fim de satisfazer às exigências de vossas bebidas; da perda de minha saúde, de outros esforços para conservar fora da porta o lobo; das vezes que eu tive de fugir durante a noite de um marido enlouquecido pelo álcool; de uma mesa vazia; do nascimento da terceira filha, em meio da sordidez que só se costuma ver nas casas das vítimas da bebida; de meus vãos esforços para alimentar e vestir as crianças; do profundo abismo para onde impelistes meu já impotente esposo.
“Uma noite, tanto era a dor que me oprimia o coração que gritei. Isso despertou Maria, que se abeirou de mim, indagando o que era. Disse-lhe que eu sofria tanto, que de certo iria morrer, que ela devia tomar o lugar da mamãe, e cuidar do papai e dos irmãozinhos, que o papai era um bebedor do qual não restava esperança, e que dentro em pouco ela seria a única, em casa a ganhar, a ganhar o pão. Encontrareis na garrafa de lágrimas como passamos aquela noite, Maria e eu, orando e fazendo planos; como a pequenita Maria, ao alvorecer, assentou-se à porta, aguardando a volta do papai; como ao nascer do Sol, ele veio cambaleando pelo caminho outrora semeado de flores, e agora infestado de mato; como Maria lhe correu ao encontro, atirou-lhe em volta do pescoço os bracinhos, dizendo:´Ó meu papai! A mamãe esteve à morte a noite passada. Ela disse que eu deveria cuidar do senhor, e das irmãzinhas. Ó meu bom papaizinho, o senhor não vai beber nunca mais não é verdade!´ com um imprecação que parecia mais vir de um demônio , ergueu o forte braço e bateu na criança – um golpe que a derrubou no passeio, onde a deixou ensanguentada e chorando, e veio bater-me e praguejar-me contra mim. Mas podeis ler tudo isso, senhor,na garrafa de lágrimas, a única coisa que eu possuía em meu nome; e que tenho direito de legar-vos como lembrança de quanto custaram esses bens que ides possuir.
“Faz apenas três dias que quatro dos vossos obedientes serviçais, ao romper da manhã, trouxeram-me o corpo sem vida de meu marido, depuseram-no no soalho e apressaram-se a volver, suponho eu, à mesma mesa de jogo sobre que vossa vítima tombara, assassinado. Encontrei alguns pretos amigos que lhe cavassem a sepultura no jardim que eu julgava ser meu, à sombra de uma de suas favoritas macieiras. Eu tencionava por ali flores no verão e coroas no inverno e ensinar às minhas filhas quão nobre era ele antes de cair em vossas garras. Parece, no entanto, que o enterrei em vosso jardim, sob uma macieira vossa. Efetivamente, ele foi deposto no assoalho de vossa casa. Este se encontra manchado de sangue de vossa vítima. Depois que alguns amigos de cor me ajudaram a amortalhá-lo, e enquanto velava seus preciosos restos naquela noite, tentei lavar as manchas de sangue, pensando que não poderia suportar vê-las e andar sobre elas. Mas eis que vejo agora é vosso o pavimento sobre que aquele que vos deu sua vasta propriedade, sua força varonil, sua família, e a própria alma, encontrou o refrigério de uma tábua.
“Ordenais que desocupe. Obedeço. Ao lerdes esta achar-me-ei em caminho, para leste. Tomo este caminho apenas porque ele me afasta de vós e de vosso antro de destruição. Não sei onde minhas três filhinhas e eu passaremos a noite. Uma coisa vos prometo, porém, seja o que for que haja num lamento de uma viúva e no pranto de um órfão, se existe realmente Deus, hei de encontrar-vos ante Seu tribunal, para ali contar, e dizer a verdade, quanto ao modo porque chegaste à posse da habitação que ora deixamos. Haveis de encontrar isso tudo, senhor, na garrafa de lágrimas.” – Transcrito.

3 comentários:

  1. Boa tarde Denilson,

    Todas as minhas palavras, aqui, são insuficientes.
    Li o texto duas vezes. Queria absorvê- lo, compreendê-lo bem. Quão ingrata é a vida às vezes!!!
    No tribunal, encontrar-nos-emos.
    Até já.
    Abraços com luz.
    Tive de parar a música, porque necessitei de silêncios e quietude.

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  2. Olá Denilson,
    Tive necessidade de reler o texto, que postou.
    Baixei o som da música e senti...
    Apareça no meu blog, há novidades fresquíssimas. Depois, e se achar, que vale a pena, comente.
    Abraços com luz,

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  3. Li um livro antigo que contava esta historia não encontrei mais o livro por isso faz algum tempo que procuro esta historia na internet hoje encontrei.
    Obrigado Denilson.

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