sábado, 19 de março de 2011

“Oração das Viúvas de Guerra”

 O texto abaixo é um dos textos que considero muito bonito, sei que é extenso, mas vale a pena ler. Foi extraído de um livro cristão e antigo. Não consegui achá-lo em outras fontes, por isso  digitei para compartilhar com vocês!

Em 1948 escreveu Mira Mora na folha da manhã, em 16 de maio, o seguinte:


Senhor! Ah anos que choro. As lágrimas em certas almas adquirem a consistência  das estalactites...
A minha alma é uma gruta onde a dor se fez pedra. Tudo, em torno, é frio e desolado como uma caverna onde jamais entra um raio de sol ou brinca um sopro de vento.
É como o túmulo milenar, onde voejam as recordações impalpáveis dos séculos. Estou velha, Senhor. Tão velha que já não me recordo de quando era feliz. Haverá alguém que seja feliz?...As flores que nascem no cemitério surgem espantadas, com medo, como se receassem a sorrir onde tudo é tristeza  e saudade...Se eu pudesse sorrir – a minha face teria um ritus monstruoso como o dos loucos. Entretanto, tenho apenas trinta anos, como sou desgraçada, sinto que passei além da morte. Ela, a grande silenciosa não se recorda de mim! Por quê? Porque a desejo, porque a ambiciono, porque a invoco. A morte é esquiva como mulher bonita; foge das que a cortejam. Já não sei como se pode fazer outra coisa a não ser chorar. Tenho visto crianças que riem e fazem bulha. Meu filho é uma dessas. Coitadinhas! Decerto não sabem que existe a guerra.
Bem sabeis,  Senhor, que não cometi crime algum. O meu erro, o meu grande erro foi ter não se casado com um covarde.
Os bons, os fortes, e valorosos filhos de um país  são mais ameaçados. Quem iria recrutar os enfermos? ou mobilizar ou mutilados?... A guerra é a ceifa dos moços, a terrível ceifa das almas em flor.
A morte prefere os que amam a vida. A humanidade é um trigal onde ele escolhe as espigas mais belas e mais loiras...
Depois ficam apenas destroços confusos, sem nome, como os ossos das sepulturas.... De quem é esta tíbia? E aquele crânio sem sombra de pelo? E aquela dentadura que rebrilha ao sol como se sorrisse diante da estupidez humana?
Nada mais parecido com um cadáver do que outro cadáver; a mesma imobilidade, a mesma frieza, a mesma rigidez espantosa. A palavra - tão  diversa de homem a homem- desapareceu num segundo.
O beijo- tão pessoal em cada boca – já não existe... E tudo é assim: recordações, pequenos segredos da alma, desejos e conquistas... tudo submergiu no silêncio e no nada. Não é atroz, Senhor?
A lei da morte é inflexível, mas ela tem um prazo mais ou menos certo, antes do qual é uma monstruosidade que revolta. As árvores morrem, mas somente depois de envelhecer. Cortar uma árvore carregada de frutos é um crime sem nome. Decepar uma vida cheia de sonhos, é igualmente uma aberração das leis naturais...Pois é isso que a guerra faz.
Sabeis o que é ser viúva, Senhor? É ser desamparada para sempre.
Eu poderia ter-me casado de novo, mas jamais conseguiria novamente o alvoroço daquela primeira felicidade. O dia só tem uma aurora e é o mais belo momento dele... A madrugada é tudo nos sentimentos e nos seres; por isso, decerto, a fizestes tão mimosa!
Ele chamava-se Jean, tinha apenas trinta anos e sempre com um sorriso bom para as crianças. E como amava nosso filho! Era artilheiro e foi, um dia, pelos ares, juntamente com a sua bateria. Não se salvou um só botão de sua farda, um só! Não é de enlouquecer? Recebi um telegrama do Ministério da Guerra, duas condecorações e cópias de vários elogios. E foi só... E esta saudade enorme (que é a sua verdadeira herança) que não passa nunca... E este filho que conta agora dez anos... Quando ouço falar em guerra, como agora, sinto calafrios de medo. Parece-me que vão roubar também o meu filho. Ele é ainda uma criança, mas as crianças crescem tão depressa! E haverá sempre guerra, Senhor.
Na última vez que vi o meu Jean, ia ele a desfilar, tão belo e olhando tão firme que chamava a atenção de todos.
Olhava de frente, muito de frente – como se alguém o chamasse. Seria a glória? Seria a morte? Seria a saudade? Hoje as cenas são as mesmas, com a diferença de serem as armas mais infalíveis e mortíferas. Vão mais depressa... para a morte.
Ela, a megera – que  anda tão devagar para os infelizes – corre a chamar os moços para seus braços sem carne! se ainda está em tempo de deter esta marcha apocalíptica, fazei-o por amor de vossa mãe! Todos esses rapazes têm alguém que por eles reza... e chora. A prece e as lágrimas são as duas grandes forças da Religião . Por que estas lágrimas não fazem um rio que detenha a marcha dos canhões? Por que essas preces não formam uma nuvem que impeçam o voo dos aviões?...
E este o mistério que me faz estalar o cérebro. Rios de lágrimas, nuvens de preces... será que nada disto valerá para deter a grande celerada?
Fazei-o agora, Senhor, antes que seja tarde demais...
Fazei parar esta carreta maldita que rola, sem cessar, com um ruído maior do que o oceano, dentro do meu peito cansado...
...E vós dissestes, Senhor: “Não matarás”...

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